terça-feira, julho 24, 2007

Lê-se

"Nestes extremos da solidão, enfim, ninguém podia esperar o auxílio do vizinho e cada um ficava só com a sua preocupação. Se um de entre nós, por acaso, tentava confessar-se ou dizer alguma coisa do seu sentimento, a resposta que recebia, qualquer que ela fosse, magoava-o a maior parte das vezes. Compreendia, então, que ele e o seu interlocutor não faavam da mesma coisa. Com efeito, ele exprimia-se do fundo de longos dias de meditação e de sofrimentos, e a imagem que queria comunicar recozera muito tempo ao fogo da expectativa e da paixão. O outro, pelo contrário, imaginava uma emoção convencional, a dor que se vende nos mercados, uma melancolia de série. Benévola ou hostil, a resposta caía sempre em falso, era preciso renunciar a ela. Ou, pelo menos para aqueles para quem o siêncio era insuportável, visto que os outros não podiam encontrar a verdadeira linguagem do coração, resignavam-se a adoptar a língua dos mercados e a falarem, eles também, de maneira convencional, a da simples narrativa e do fait-divers, de certo modo a da crónica quotidiana. Ainda nisso as dores mais verdadeiras tomaram o hábito de se traduzir nas formas banais da conversação. Só por este preço podiam os prisioneiros da peste obter a compaixão do seu porteiro ou o interesse dos seus auditores.
Entretanto, o que é mais importante, por mais dolorosas que fossem estas angústias, por mais pesado que estivesse este coração, se bem que vazio, pode dizer-se que estes exilados, no primeiro período da peste, foram privilegiados. Com efeito, no próprio momento em que a população começava a afligir-se, o seu pensamento estava inteiramente voltao para o ser que esperavam. Na desolação geral, o egoísmo do amor preservava-os, e, se pensavam na peste, não era nunca senão na medida em que ela trazia à sua separação o risco de se tornar eterna. Traziam assim ao próprio coração da epidemia uma distracção salutar, que se era tentado a tomar por sangue frio. O seu desespero salvava-os do pânico, havia qualquer coisa de bom na sua desgraça. Por exemplo, se acontecia que um deles fosse levado pela doença, era quase sempre sem que tivesse tido tempo para dar por isso. Arrancado a essa longa conversa interior que mantinha com uma sombra, era então atirado sem transição para o mais espesso silêncio da terra. Não tivera tempo para nada."

Albert Camus - A Peste

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